Coluna – Ricardo Cury – A chama não pode se apagar

Coluna – Ricardo Cury – A chama não pode se apagar

Num início de tarde de um dia qualquer, Quinho me liga e diz:

– Man, o estúdio pegou fogo.

– Hein?

– O estúdio pegou fogo.

– Que estúdio, rapaz?

– O da banda.

– Que banda, porra?

– Da brincando de deus, caralho.

– Como assim?

– Pegou fogo… Incêndio.

– Caralho, e aí?

– Queimou tudo.

– Tudo?

– Tudo.

– Tudo??

– Tudo, caralho. Queimou tudo. Não sobrou nada, nem minha bateria, nem o baixo de Dalmo, a guitarra de Cezar, o amplificador…

Assim começava o segundo semestre de 1999 para a brincando de deus. O saldo final foi o pó de uma bateria Tama japonesa com dois tons e dois surdos, com todas suas ferragens e pratos; de um baixo Music Man de cinco cordas; uma guitarra Ária Pró II antiga e artesanal; um amplificador Marshall e, além dos instrumentos, um baú com gravações inéditas e todo material de clipagem da banda. O estúdio também era na casa da mãe do vocalista Messias, no Bonfim, queimando também um quarto com centenas de livros. Até hoje, quando ela pergunta por Quinho, ela diz “cadê o incendiário?”. 

– Como foi isso, Quinho?

– Porra, fui pra lá tocar bateria e esqueci o ar ligado.

O ar-condicionado do estúdio era tão velho quanto a banda. Esquentou, saiu faísca e daí pro fogo pegar nas paredes encarpetadas foi 1, 2, 3, 4.

A tragédia apenas aumentou os momentos de incertezas que a banda já vinha passando. A falta de perspectiva, o marasmo, a vida pessoal de cada um, tudo parecia ir contra a banda, e agora o incêndio, que não só teve prejuízos financeiros. Quem é músico e tem um instrumento de estimação sabe da dor que é. Shows marcados tiveram de ser cancelados, pois a banda não tinha com o que tocar. “Isso que dá usar esse nome”, comentavam uns. 

Em 1996, após um show, bateram na porta do camarim. Rogério Big Bross abriu:

– Messias, tem umas pessoas aqui querendo falar com você.

O que tomou a frente estava com uma bíblia na mão e uma camisa social abotoada até o pescoço.

– Você não pode usar esse nome na sua banda. Vocês não são Deus – disse ele.

– É claro que não, mas, por gentileza, abra a bíblia em João 10:34.

O cara abriu.

– O que Jesus disse? – Messias perguntou.

– “Sois deuses” – respondeu o cristão, lendo a bíblia, um tanto contrariado.

– Mais alguma coisa?

– Tem algum disco da banda ai?

– Tem ali na banquinha. Dez reais.

“A chama não pode se apagar”, comentou Cláudio Escória com Messias, ao saber do incêndio, e uma luz no fim da noite, enfim, se acendeu. Emergentes da Madrugada era o nome do projeto que tinha acabado de gravar o disco “Entre” do Cascadura e estava gravando o segundo do Dead Billies, que se chamaria “Heartfelt Sessions”. O projeto era uma parceria entre o Governo do Estado da Bahia, os estúdios WR (templo sagrado da axé-music) e o também sagrado produtor Nestor Madrid, ganhador de inúmeros discos de ouro com Chiclete com Banana, Luiz Caldas e Banda Reflexus.

O produtor cultural Roberto Sant´anna, que estava na direção executiva do Emergentes da Madrugada, disse que a brincando de deus estava na lista do projeto, inclusive, assumindo que o incêndio, junto com a relevância da banda, foi um dos fatores determinantes. 

– Mas como vamos gravar, não temos instrumentos?

Antes de ser baterista, eu era o roadie da banda e, antes disso, um grande fã. Tomei pra mim a responsabilidade de arranjar os instrumentos e liguei pra todos os músicos que conhecia, dando os devidos créditos no encarte do disco. Ao invés de ter “brincando de deus usa guitarras Gibson, baixo Fender, baterias Premier” tinha “brincando de deus usa guitarras de Daniel, Candido e João; baixo de Pedro e Luis Fernando; bateria de Cury; violão de Luisão.

O primeiro dia de gravação não aconteceu. O estúdio dessa vez pegou água. Choveu tanto na cidade que faltou luz. As gravações começariam no dia seguinte. O projeto tinha um cronograma que devia ser milimetricamente respeitado. De segunda a sexta, começando meia noite e terminando às sete da manhã. A vida de todos os envolvidos foi deixada de lado.

Durante todo o tempo, Nestor Madrid e brincando de deus foram se conhecendo. As madrugadas eram entre paredes recheadas de discos-de-ouro e histórias obscuras do axé, contadas por Nestor. No estúdio de cima, os Dead Billies começavam a mixar o recém gravado disco, também com o mesmo produtor, que tinha que ficar subindo e descendo as escadas da WR.

– Nestor, vai confundir tudo. Nosso disco sair rockabilly – dizia Messias.

– Cuidado pro nosso não sair meio triste – alertava Glauber.

Em uma das músicas, a banda convidou todos os amigos pra fazer um coral. Mais de 50 pessoas. Entre bebidas e outras coisas, amigos, músicos de outras bandas e gente que nunca cantou na vida ficaram juntas cantando Lala..lala…lala lala…lala lala…laaaaaa.

Alguns levavam a coisa muito a sério. Fábio Cascadura tentou ensaiar o “lala lala” em diferentes tonalidades. Teve gente que botou a mão no ouvido no modo “We are the Word”. Por outro lado, tinha a galera dos “subtonados”, que não conseguiam acertar nem uma nota. Não ficou um coral “gospel”, mas está lá. Baixinho, mas está, devidamente creditado no encarte como “Coro do rock”.

Nesse clima, foi feito o homônimo terceiro disco. Até uma matéria pro Fantástico com Maurício Kubrusly para o quadro Me Leva Brasil a banda gravou.

– Li sobre eles e me interessei.- disse o jornalista, se referindo ao incêndio e a história do quase seminarista Messias. 

A gravação do disco, junto com a mixagem, duraram inimagináveis seis meses. E em todos esses dias ficamos na companhia do porteiro da WR, que por outra ironia do destino se chamava Roque.

– É Roque mesmo? – perguntava eu.

– Oxe, é Roque de verdade – respondia ele, que abria todos os dias os portões da WR para a brincando de deus, os Dead Billies e o Cascadura.

Para ler crônicas da brincando de deus, acesse www.livromanteiga.com.br e reserve seu exemplar do novo livro de Ricardo Cury chamado Manteiga.

O PROJETO

“Manteiga” surgiu quando a psiquiatra perguntou se eu queria marcar uma consulta ou mandar um relato por escrito. Escolhi o relato, mas, no meio do processo, o texto foi se transformando em uma crônica um tanto grande, quando me dei conta que, editada e misturada com outras, podia virar uma história. São várias. Você gosta de histórias? E de manteiga?

Ricardo Cury

Ricardo Cury

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